Biocurativo de pele de tilápia vai revolucionar o tratamento de queimaduras

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Diversos países se prontificaram a ajudar o Líbano após a terrível explosão no porto de Beirute, em 04 de agosto, que causou 190 mortes e deixou mais de 4 mil feridos. Um grupo de brasileiros, por exemplo, enviou para lá um lote de peles de tilápia. O objetivo não foi o socorro alimentar, mas o tratamento de queimaduras e ferimentos. 

 

Os doadores fazem parte de uma pesquisa inovadora, iniciada em 2015 e que já coleciona 15 prêmios, todos em 1º lugar. O Projeto Pele de Tilápia, uma parceria entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), de Fortaleza, surgiu para desenvolver um método de uso da pele do peixe no tratamento de queimaduras de segundo e terceiro graus – muitas vezes contraídas em incêndios. Os estudos foram concluídos com sucesso, e a expectativa é de que a biotecnologia chegue aos ambulatórios nacionais em cerca de dois anos.

 

A pele de tilápia apresenta teor elevado de colágeno do tipo 1, importante para a cicatrização, além de boa resistência à tração. Tais características levaram ao insight do biocurativo pelo cirurgião plástico Marcelo Borges. A ideia estimulou a criação de um grupo de trabalho no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da UFC, em aliança com o IAQ. Hoje, o uso clínico da pele de tilápia compreende uma rede de pesquisas com 227 colaboradores, no Brasil e em outros seis países – Alemanha, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Holanda e México. 

 

Para o tratamento de queimados no Brasil, é compreensível o entusiasmo quanto ao projeto. O uso de curativos ambulatoriais à base de dermes de animais como o porco, a rã e cães, presente em outros países, não é autorizado no país. Com a pele humana, o quadro também é adverso. “O Ministério da Saúde calcula que deveríamos ter 13 bancos de pele humana no país. Contudo, temos apenas quatro, concentrados no eixo Sul-Sudeste e capazes de suprir somente 1% da demanda nacional”, relata a INCÊNDIO o cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do IAQ e coordenador da pesquisa sobre a pele de tilápia.

 

Queimaduras de segundo e terceiro graus são geralmente tratadas por meio da aplicação de uma pomada de sulfadiazina de prata e curativos sintéticos. As áreas lesadas são lavadas, untadas e recebem a troca do curativo a cada dia. O procedimento é extremamente doloroso para os pacientes, mesmo com o uso de analgésicos ou anestesia. Com a pele de tilápia, o quadro muda drasticamente. “Nas queimaduras de segundo grau superficiais, a pele do peixe fica aderida ao ferimento até o final da terapia, que pode variar de 10 a 12 dias. Nas queimaduras de segundo grau profundas ou de terceiro grau, o curativo é renovado depois de 5 a 7 dias”, explica Maciel. 

 

Afora o conforto para os pacientes, o curativo de pele de tilápia reduz quase pela metade os custos do tratamento, conforme verificaram dois estudos realizados pelos pesquisadores. Por tudo isso, o Ministério da Saúde já declarou interesse em implantar a solução no Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, o tratamento é realizado somente no âmbito das pesquisas e na orientação de centros médicos. Segundo Maciel, a aprovação da biotecnologia – que envolve a seleção de uma empresa para a fabricação dos curativos e a obtenção das autorizações pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – deve ocorrer em até dois anos.

 

O presidente do IAQ explica que, além das propriedades intrínsecas, diversos fatores convergem para tornar a pele do pescado uma escolha ideal para a terapêutica de queimaduras. Nativa da África, a tilápia é conhecida pela facilidade de criação, o que tornou sua cultura abundante em todo o Brasil. O crescimento é rápido: em seis meses um alevino se transforma em um exemplar adulto. Há ainda o baixo custo da pele, que é geralmente descartada pela indústria. “Ou seja: os curativos também ajudam a aproveitar o que seria um resíduo, colaborando com a questão ambiental”, observa Maciel.

 

Nas pesquisas, as peles são frutos de doações da Bomar, companhia de pescados situada no Ceará. Além de uma lavagem na própria piscicultura, o material é submetido a procedimentos de limpeza, descontaminação e esterilização assim que chega à UFC. Em seguida, as peles viajam até o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, onde passam por uma nova esterilização por irradiação. Todo o processo é acompanhado por estudos microbiológicos, de modo a assegurar a eliminação de bactérias, fungos e vírus. 

 

As peles tratadas são então acondicionadas em embalagens estéreis, podendo ser conservadas sob refrigeração ou mesmo em temperatura ambiente, quando embaladas a vácuo. Em ambos os casos, a vida útil é de no mínimo dois anos. Maciel considera importante realçar a realização de todo esse protocolo antes da aplicação ambulatorial, para deixar claro que ninguém deve utilizar pele in natura sobre os ferimentos. “Essa automedicação pode ter consequências graves, como infecções no paciente queimado e repercussões para toda a sua vida”, adverte o especialista.

 

Desde o início dos estudos, mais de 500 pacientes já tiveram queimaduras graves tratadas com pele de tilápia, exibindo abreviações importantes da cicatrização. Nenhum caso de rejeição, infecção ou alergia ao material foi registrado. Estudos no Brasil e no exterior também vêm colhendo resultados positivos na medicina veterinária, prometendo, por exemplo, um aprimoramento no cuidado de animais silvestres feridos em incêndios florestais, como os recentemente sucedidos na Amazônia e no Pantanal.

 

Não bastasse isso, a pele da tilápia promete auxiliar outras áreas da medicina. Após dois anos, os pesquisadores brasileiros conseguiram desenvolver uma estrutura de colágeno puro (scaffold) a partir da pele do peixe. O produto já foi empregado com sucesso em intervenções ginecológicas e na medicina vascular (tratamento de úlceras varicosas), e agora acena a uma série de usos nos campos da cirurgia geral (tela abdominal para hérnias), cirurgia plástica (recobrimento de próteses mamárias), neurocirurgia (cobertura de exposições da meninge), cardiologia (construção de válvulas coronárias), otorrinolaringologia (tratamento de perfurações de tímpano) e endoscopia, entre outros. “Essas aplicações já estão sendo avaliadas em animais, e a expectativa é de que elas avancem em breve para os estudos em humanos”, situa Maciel.

 

Em tempo: e qual foi o resultado do uso da pele de tilápia no tratamento de queimados no acidente do Líbano, descrito no início da reportagem? “A situação por lá anda um tanto caótica. Fizemos a remessa das peles, mas não tivemos retorno. Esperamos que a tecnologia esteja ajudando pessoas”, afirma o presidente do IAQ.

 

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